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Mark Tully: uma lenda do rádio na Índia

Por mais de 25 anos, uma das mais reconhecidas e confiáveis vozes no rádio da Índia foi a de Mark Tully. Esse correspondente britânico da BBC cobriu todos os importantes acontecimentos que marcaram a história recente do país até meados da década de 1990. Ele é uma testemunha viva da época em que o rádio era o principal meio para alcançar as massas, as comunicações telefônicas não eram confiáveis e as gravações de rádio eram feitas em fitas magnéticas que precisavam ser enviadas fisicamente para os escritórios dos editores. 

Sébastien Farcis, jornalista francês que vive em Nova Deli

Dezembro de 1992: a (mesquita) Babri Masjid, do século XVI, em Ayodhya, acabara de ser demolida por extremistas hindus sob alegação de que havia sido construída no local de um antigo templo hindu. Milhares de militantes avançaram pelas ruas dessa cidade, no estado indiano de Uttar Pradesh, atacando jornalistas que estavam lá para cobrir esse momento dramático da história do país. Enquanto eles destruíam as câmeras fotográficas e filmadoras, um jornalista estrangeiro foi especialmente visado. A multidão gritava seu nome: Mark Tully! O chefe de departamento da Corporação Britânica de Radiodifusão (British Broadcasting Corporation – BBC) para a Índia e o sul da Ásia escapou por pouco de ser atacado. Ele ficou trancado em um pequeno templo, até que finalmente foi libertado por três colegas indianos e levado à segurança após a intervenção de uma autoridade local.

Por mais de 30 anos, o correspondente de rádio – e, ocasionalmente, de televisão – assumiu a pesada responsabilidade de ter uma das vozes mais ouvidas em um país com mais de 1 bilhão de habitantes. Ele foi ameaçado, espancado e até expulso da Índia – mas sempre voltava. Por fim, ele nunca saiu de todo e fez de Nova Deli seu lar. 

É preciso dizer que, de certa forma, o país era seu. Tully nasceu em Calcutá, em 1935, em uma família rica de colonos britânicos. Seu pai era diretor de uma ferrovia e sócio de um grupo de empresas que possuía um banco, uma empresa de seguros e plantações de chá. Após a Segunda Guerra Mundial, seus pais o enviaram para um internato no Reino Unido. Mais tarde, ele fez cursos de teologia na Universidade de Cambridge e, depois, entrou em um seminário.

“Eu pensei que poderia ter um chamado para ser padre. Mas fiquei lá por apenas dois períodos”, relembra Tully, agora com 84 anos, em entrevista para O Correio da UNESCO em seu apartamento no histórico distrito de Nizamuddin, em Nova Deli. “Sempre fui rebelde e não gostava da disciplina do seminário. Além disso, eu gostava muito de cerveja”, admite ele com um sorriso contido.

Retorno à Índia

A carreira de Tully como jornalista o trouxe de volta à sua terra natal. Em 1965, ele foi contratado como administrador do Escritório da BCC em Nova Deli. Porém, rapidamente acabou atrás do microfone. “Minha primeira transmissão foi uma reportagem sobre um rali de carros antigos. Lembro-me que eles pararam e fizeram um piquenique. E gravei um marajá dizendo: ‘Porque você não para e toma uma taça de champanhe?’” 

Tully retornou a Londres em 1969, para chefiar a seção hindi e, depois, a seção da Ásia Ocidental – pelo qual cobriu a Guerra de Independência de Bangladesh, em 1971. “Fui um dos primeiros jornalistas autorizados a entrar em Bangladesh. Foi o evento mais importante que me aconteceu em minha carreira, e que fez meu nome e minha reputação”, disse ele.

Embora tenha viajado com o exército, o que intimidou algumas das pessoas que conheceu, o repórter ainda pôde observar a extensão da crise humanitária provocada pela guerra. A maior parte de seus relatos foi transmitida ao escritório por telefone. “Não havia como enviar as fitas ao escritório com rapidez suficiente, eu tinha que levá-las de volta para Londres”, explica Tully. “Eu gravava principalmente reportagens de voz direta em fita, usando um gravador Uher. Naquela época, podíamos trabalhar com gerentes de estúdio e engenheiros de som, que era verdadeiros mágicos”.

Pendurada sobre uma cômoda em seu apartamento, uma grande foto em preto e branco, tirada alguns meses após a guerra, mostra um jovem Tully com o xeique Mujibur Rahman, o primeiro presidente do recém-formado Bangladesh.   

Daquele momento em diante, sua carreira decolou. Em 1971, Tully foi designado correspondente da BBC em Nova Deli e, alguns anos depois, nomeado chefe do departamento, responsável por cobrir a região do Sul da Ásia – que incluía Índia, Paquistão, Bangladesh e Sri Lanka. Foi um cargo que ele ocupou por 20 anos, até sua aposentadoria, em 1994. Sua voz característica, a voz da BBC, foi reconhecida e reverenciada por diferentes gerações de indianos.

Ao longo desse período, o intrépido jornalista cobriu insurreições, eleições e fez reportagens sobre uma grande variedade de assuntos, incluindo a corrupção política, o trabalho forçado e o misticismo sufista. No início da década de 1990, Tully noticiou de forma extensiva a modernização da Índia e as mudanças sociais que isso inevitavelmente provocou. Toda essa atividade também se refletiu no livro India in Slow Motion (A Índia em câmara lenta, em tradução livre), um publicado em 2002, em coautoria com sua parceira, a escritora britânica Gillian Wright.

Nas décadas de 1970 e 1980, ocorreram muitos desafios técnicos que os correspondentes internacionais de rádio enfrentaram na Índia. Para a gravação de cada reportagem de áudio, o escritório de Nova Deli precisava agendar uma ligação telefônica internacional ou usar a estação de rádio pública, a All India Radio (AIR), que possuía linhas de transmissão melhores. Fora da capital, a tarefa era ainda mais desafiadora..

Na Cúpula de Simla de 1972, realizada nesta cidade montanhosa no norte da Índia, onde foi assinado um acordo de paz entre Índia e Paquistão para pôr fim à guerra de 1971, “o telefone foi tão inútil que tivemos que enviar telegramas para Londres, e eles eram lidos no ar”, relembra Tully. As fitas das reportagens sempre eram enviadas fisicamente por avião.

A “voz da verdade”

Em uma época em que a AIR, o principal serviço de rádio do país, era controlado pelo governo, a BBC representava a “voz da verdade”, segundo Madhu Jain, editora-chefe da revista literária e cultural The Indian Quarterly. O canal de rádio britânico tinha mais retransmissores que alcançavam os menores vilarejos indianos. Tully logo se tornou uma celebridade, cuja voz era reconhecida e considerada confiável em todo o subcontinente. “Ele era muito respeitado por seus ouvintes porque era objetivo e moderado”, diz Jain, que o conhece bem. Ela se lembra de sua dicção singular. “Ele tem esse tipo de voz de elite da classe alta, com uma boa educação. Um pouco datada agora, porque hoje em dia os jovens falam mais depressa”, ela acrescenta.

Trabalhando ao lado de Tully, Satish Jacob, vice-chefe do escritório da BBC entre 1978 e 2003, também contribuiu muito para a credibilidade da emissora estrangeira. Embora o escritório de Londres tenha por vezes comentado sobre seu sotaque indiano, Jacob deu à BBC um de seus mais impressionantes furos de reportagem: o anúncio do assassinato da primeira-ministra Indira Gandhi, em 31 de outubro de 1984.

Naquela manhã, informado de que alguém havia deixado a residência da primeira-ministra em uma ambulância, Jacob foi até o hospital e conseguiu que um médico lhe contasse o que havia acontecido. “Quando perguntei se a condição dela era grave, ele me disse que o corpo de Indira Gandhi estava todo cheio de balas”, lembra Jacob, agora com 80 anos. “Eu saí do hospital como um velocista de nível internacional, fui direto para o escritório e pedi que ligassem para Londres. Eu não tinha tempo de escrever nada. ‘Houve um atentado contra a vida da sra. Gandhi, e ela foi internada em um hospital de elite em Nova Deli’, foi tudo o que pude dizer”.

A primeira-ministra da Índia faleceu às 10h50 da manhã, mas a rádio pública do país não anunciou sua morte até várias horas depois, às 6h00 da noite, quando seu filho, Rajiv Gandhi, confirmou oficialmente a informação. Ainda hoje, os indianos de todo o país se lembram que ouviram pela primeira vez sobre o assassinato de Indira Gandhi na BBC.

Tully finalmente deixou seu emprego como correspondente de rádio em 1994, mas permaneceu na Índia. Ele continuou a apresentar Something Understood (Algo Entendido, em tradução livre), um programa sobre espiritualidade, na Radio 4 da BBC, até o fim deste, em abril de 2019, depois de 24 anos. “Eu tenho muito carinho pela Índia, um país pelo qual vale a pena lutar como jornalista”, disse ele. “E teria sido um reflexo inadequado do que eu fiz (por todos esses anos) se tivesse que ir embora porque perdi o apoio da poderosa organização!”

Seu país adotivo devolveu esse carinho, concedendo a ele duas das mais altas honras civis da Índia – o Padma Shri (pelo serviço diferenciado) e o Padma Bhushan (pelo serviço diferenciado da mais alta ordem). Na Inglaterra, em 2002, a Rainha Elizabeth II o nomeou Knight Commander of the Order of the British Empire (KBE) por sua contribuição ao jornalismo. Tully, que mantém seu forte sotaque inglês, insiste que essas distinções são “embaraçosas, mas que seria mais arrogante recusá-las”. Elas não parecem ter mudado esse homem humilde, que permanece profundamente ligado ao rádio, o “meio extraordinário que nos permite falar diretamente com as pessoas”.

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