Artigo

Povos indígenas: guardiões informados da biodiversidade

Pelo menos um quarto da área de terras do mundo é tradicionalmente de propriedade, administrada, usada ou ocupada por povos indígenas. Contudo, embora seu conhecimento seja cada vez mais reconhecido, raramente é levado em consideração por pesquisadores e formuladores de políticas. 

Peter Bates

Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES); Unidade de Suporte Técnico sobre Conhecimento Indígena e Local, UNESCO.

Prasert Trakansuphakon

Associação Pgakenyaw para o Desenvolvimento Sustentável, Tailândia.

Os habitantes Karen da vila de Hin Lad Nai, situada nas exuberantes florestas da província de Chiang Rai, no norte da Tailândia, praticam há séculos o cultivo rotativo. Essa técnica sustentável de agricultura de corte e queima – antes criticada erroneamente por contribuir para a mudança climática – tem sido usada em todo o mundo para regenerar a terra e apoiar a biodiversidade. 

Pequenos trechos de floresta são limpos de árvores e arbustos, antes da realização de queimadas controladas para colocar nutrientes de volta no solo. Uma ampla gama de cultivos é então plantada por um período limitado, após o qual a área é deixada em pousio ou em repouso. Eventualmente, a floresta volta a crescer e o ciclo é repetido. 

Dessa forma, a comunidade cria um mosaico de habitats na floresta, com diferentes estágios de cultivo e rebrota. Em um momento no qual a população de abelhas está em declínio em todo o mundo, três diferentes espécies de abelhas selvagens estão prosperando em Hin Lad Nai. O mel colhido nas áreas de pousio é de qualidade superior ao da floresta, e é vendido em mercados por toda a Tailândia.  

O caso dos habitantes de Hin Lad Nai é apenas um exemplo entre muitos. Os ambientalistas estão se tornando cada vez mais conscientes do papel que os povos indígenas desempenham na defesa de seu patrimônio natural. A importância de aproveitar seu conhecimento ecológico tradicional para defender a biodiversidade da Terra, em processo de esgotamento, foi reconhecida de forma clara pelo relatório de avaliação global, Global Assessment Report, da IPBES, lançado em maio de 2019. 

A importância de aproveitar seu conhecimento ecológico tradicional foi reconhecida

A UNESCO apoia essa iniciativa há muito tempo, particularmente por meio do programa LINKS, que abriga a Unidade de Suporte Técnico sobre Conhecimento Indígena e Local da IPBES.  

Séculos de conhecimento

Muitos povos indígenas vivem em áreas isoladas e geralmente com alta biodiversidade, nas quais viver em equilíbrio com a natureza é fundamental para a sobrevivência. Como observadores atentos de seus ambientes, os povos indígenas possuem conhecimento ao relacionar vários fenômenos às mudanças no ecossistema – mudanças nos padrões meteorológicos, por exemplo, ou impactos de novas espécies que adentram seus territórios . 

Por exemplo, séculos de conhecimento sobre tsunamis permitiram que os Moken, ou “nômades do mar” do Mar de Andamão, ao longo da costa oeste da Tailândia, permanecessem seguros quando a catástrofe mortal atingiu seus vilarejos, em 2004.  

Esse conhecimento também é usado para realizar previsões sazonais e prever padrões climáticos. Os pastores da África Oriental são capazes de prever quando e onde as chuvas cairão – ao observar os padrões de floração das árvores e o comportamento de insetos e aves. Esses indicadores biológicos são observados por batedores, que percorrem o terreno para determinar para onde e quando os rebanhos de gado devem se deslocar.

Este conhecimento indígena não é estático. Ele é constantemente enriquecido para incluir o conhecimento de novos fenômenos que afetam o meio ambiente. As comunidades das Primeiras Nações, no norte do Canadá, observaram mudanças no comportamento de caça e na dinâmica das matilhas de lobos, seguidos por consequentes declínios das populações de caribus. Essas mudanças são atribuídas às estradas e aos oleodutos que agora atravessam suas florestas.  

Animais, plantas e espíritos

Os sistemas de conhecimento indígena incluem valores para administrar a relação dos seres humanos com a biodiversidade. Em sua concepção, a “natureza” geralmente inclui os animais, as plantas, a Terra, os seres humanos e os espíritos – todos ligados em relações de parentesco recíprocas. Os seres humanos não são considerados superiores à natureza, e a natureza não existe para servi-los. 

Em algumas comunidades indígenas, acredita-se que os animais se apresentam como presentes aos caçadores – presentes que devem ser respeitados e apreciados por meio de rituais. A carne é compartilhada com outros membros da comunidade e animais, como visto em especial nas comunidades baleeiras do Alasca. Um complexo sistema consuetudinário de instituições, regulamentos e tabus tem a função de informar e regular as relações dos povos indígenas com seus ambientes.

No entanto, atualmente, os povos indígenas se encontram na linha de frente das mudanças ambientais e sociais em âmbito mundial. A agricultura, a exploração madeireira e o desenvolvimento industrial cada vez mais prejudicam ou destroem áreas com alta biodiversidade, e as terras ancestrais muitas vezes são tomadas ou invadidas e transformadas em fazendas e plantações de monoculturas. Às vezes, essas intervenções são acompanhadas de violência. As águas estão cada vez mais poluídas, os animais abatidos e as plantas colhidas a taxas insustentáveis, deixando pouco para que os povos indígenas possam se alimentar e prejudicando os meios de subsistência tradicionais.

Os esforços para integrar os povos indígenas às sociedades nacionais também ameaçam seu modo de vida. A educação formal, com professores em salas de aula, pode reduzir as oportunidades de aprendizagem na prática com os anciãos. Paradoxalmente, os esforços para conservar a biodiversidade, como o estabelecimento de áreas protegidas ou a imposição de proibições ao abate ou à extração de algumas espécies, também podem ser uma ameaça – pois podem impedir que os povos indígenas tenham acesso a alimentos e espaços tradicionais. 

Educados pelos anciãos

As comunidades indígenas têm muito a nos ensinar. No entanto, os esforços para integrar os conhecimentos indígenas à ciência ocidental muitas vezes são infrutíferos, uma vez que aqueles são em grande parte orais ou empíricos. Pesquisadores e formuladores de políticas tendem a consultar registros escritos do conhecimento indígena, em vez de se envolverem com o próprio povo.

Ainda assim, há um número crescente de bons exemplos e melhores práticas para colaborações com os povos indígenas em torno da pesquisa sobre biodiversidade, educação, gestão e tomada de decisões. No entanto, esses exemplos geralmente dependem do fato de os povos indígenas serem considerados parceiros em condição de igualdade. 

Há um número crescente de bons exemplos e melhores práticas para colaborações com os povos indígenas

Em vez de objetos a serem pesquisados, os povos indígenas podem ser apoiados para criar projetos de pesquisa, desenvolver questionamentos, metodologias e resultados que façam sentido para eles. O projeto Intercâmbio de Observações Locais e Conhecimento do Ártico (Exchange for Local Observations and Knowledge of the Arctic– ELOKA), que trabalha com o conhecimento indígena dos Inuítes sobre o gelo marinho, é um exemplo disso. 

Os currículos escolares podem ser desenvolvidos por e para os povos indígenas, a fim de incentivar e facilitar a aprendizagem na prática, com os anciãos, em vez de apenas nas salas de aula. Essa abordagem está sendo cada vez mais explorada pelas comunidades das Primeiras Nações, no Canadá, e pelas comunidades nativas do Havaí, nos Estados Unidos. 

Chegou o momento de os povos indígenas terem pleno controle sobre as decisões que afetam suas terras, os recursos hídricos e suas comunidades, de modo a poderem aplicar seus conhecimentos diretamente para implementar decisões que sejam favoráveis à biodiversidade. Onde isso for possível, os benefícios para as pessoas, para o planeta e para a biodiversidade serão consideráveis. 

Reservas da Biosfera: mobilização contra o desmatamento na Amazônia

Leia mais:

SIKU: tecnologia de ponta combinada com conhecimento ancestral, O Correio da UNESCO, jan./mar. 2019.

De arroz, peixes, patos e seres humanos, O Correio da UNESCO, jan./mar. 2019.

Escute a voz do lago, O Correio da UNESCO, abr./jun. 2018.

 

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The importance of harnessing traditional ecological knowledge has been recognized

There are a growing number of collaborations with indigenous peoples