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Rádio da madrugada: uma janela para a intimidade

Com um tom mais livre e íntimo do que as transmissões diurnas, o rádio da madrugada tem sido o local privilegiado para confidências transmitidas no anonimato da noite. Em um horário propício à imaginação e à solidão, essas transmissões oferecem aos ouvintes uma voz reconfortante que parece falar apenas com eles. Contudo, estão agora dando lugar a uma programação menos onerosa.

Marine Beccarelli  

“O rádio é, de certo modo, a humanidade que fala consigo mesma e que refere a si mesma dia e noite”, escreveu Jean Tardieu em Grandeur et faiblesse de la radio, em 1969 (UNESCO. The grandeur and weakness of radio, Paris, 1969. p. 22). De fato, essa humanidade que o poeta francês evocou apenas começou a falar consigo mesma durante a noite há pouco tempo.

No início da década de 1920, quando as primeiras estações de rádio apareceram, elas ficavam no ar por apenas algumas horas do dia. Os horários de programação se expandiram gradualmente para preencher a maior parte do dia, mas as transmissões paravam quando a noite chegava. Até o final da década de 1930, apenas algumas noites eram excepcionalmente animadas no rádio, como o Natal e o Ano Novo, quando programas festivos e musicais se estendiam além do horário normal.

Porém, não deve haver momento melhor para se ouvir rádio do que durante as horas da noite – quando o ouvinte está mais disponível, mais só e menos distraído por demandas externas. No escuro, o som se desenvolve, “é em nossa audição que preferimos confiar”, escreveu o filósofo francês Michaël Foessel em Quand la nuit s’éteint (Quando a noite termina, em tradução livre), na revista francesa Esprit, n° 393 (mar./abr. 2013, p. 12).

O rádio tornou-se um item de consumo cotidiano na década de 1950, quando era um elemento permanente na maioria dos lares e passou a tomar conta da noite. Nos Estados Unidos, as estações de rádio oferecem programas noturnos desde o final da década de 1940, para fazer sonhar aqueles ainda acordados. Em Lonesome Gal, uma atriz anônima sussurrava palavras doces nos ouvidos de seus ouvintes, predominantemente homens.

Uma voz para os trabalhadores noturnos

Na Europa, as transmissões regulares de rádio noturno foram introduzidas na década de 1950. O primeiro de seu tipo, Notturno dall’Italia, foi criado na Itália em 1952. Era essencialmente um programa de música dedicado a pessoas da noite – caminhoneiros e vigias noturnos, padeiros e tipógrafos, enfermeiras e insones.

Em 1955, a estação de rádio francesa, Paris Inter, lançou o programa Route de nuit. A introdução muito recente do rádio de carro, aliada ao aumento do tráfego de automóveis, o possibilitou fazer companhia aos motoristas nas estradas para que não dormissem ao volante. Contudo, muito rapidamente, as cartas dos ouvintes testemunharam o sucesso desses programas. E sua popularidade logo se difundiu além dos motoristas e trabalhadores noturnos. Insones, noctívagos, estudantes, artistas e idosos ouviam esses programas da madrugada. O transístor, que tornou possível ouvir o rádio de maneira individual ao ser possível levar o rádio particular para o quarto, também incentivou o desenvolvimento de uma programação mais diversificada.

Os programas da madrugada logo começaram a transmitir os sons barulhentos e festivos da noite, transmitidos de um bar, por exemplo, mas também criaram uma atmosfera íntima de discussão tranquila. Programas feitos com base em confissões verdadeiras de ouvintes começaram nos Estados Unidos na década de 1960, iniciados pelo influente programa noturno de âmbito nacional de Herb Jepko, apresentador do programa de entrevistas em rádio.

Na França, a partir de 1967,o programa vespertino de Ménie Grégoire, na estação de rádio privada RTL, dava às mulheres a chance de discutir assuntos íntimos. E os programas de rádio confessionais assumiram uma nova dimensão nas ondas de rádio da madrugada, iniciado em 1975, pelo Ligne Ouverte (Linha aberta, em tradução livre), apresentado por Gonzague Saint-Bris na rádio privada, Europe 1. Em seguida, a rádio pública, France Inter, lançou o Allô Macha (Olá Macha, em tradução livre), apresentado por Macha Béranger, que foi ao ar de 1977 a 2006.

Nesses programas, os ouvintes podiam ligar para a central telefônica da estação de rádio quando a solidão se tornava mais forte e a ansiedade precisava ser aliviada. Esse tipo de programação noturna gradualmente se espalhou por todo o mundo, ao ponto de representar a própria essência do rádio noturno – um lugar onde as pessoas pudessem se comunicar e ser ouvidas. Esses programas ainda existem, são esses de entrevistas que se prolongaram por mais tempo no ar.

O fim dos monopólios do rádio da madrugada

As madrugadas também se mostraram um playground para explorar a noite em todas as suas dimensões e também a criatividade do rádio. Em contraste com as transmissões diurnas, os programas inventivos e pioneiros foram lançados nas ondas do rádio noturno, com uma liberdade quase completa de tom e forma. Um exemplo disso é o Nuits magnétiques (Noites magnéticas, em tradução livre), lançado em 1978 na estação de rádio pública da França, France Culture, que misturava revelações pessoais de celebridades com as de pessoas comuns, em uma atmosfera sonora experimental e musical, muitas vezes psicodélica.

Ao mesmo tempo, as estações de rádio piratas francesas também usavam a noite de maneira extensiva para entrar no ar, ignorando o monopólio das rádios estatais, estabelecido em 1945. O mesmo fizeram as estações piratas britânicas ou italianas, como a Radio Alice, em Bolonha..

Entretanto, as horas gloriosas do rádio noturno parecem ter desaparecido. O surgimento da televisão 24h no final da década de 1980 contribuiu para a redução da importância e do entusiasmo dos programas de rádio noturno, que, até então, tinham o monopólio dos programas de entrevistas noturnos. Além disso, com o advento da internet e o desenvolvimento de podcasts, em meados dos anos 2000, tornou-se possível ouvir rádio quando quisesse em qualquer horário, desconectado do tempo real ao vivo.

Devido a cortes de orçamento, as estações de rádio optaram por substituir suas transmissões ao vivo depois da meia-noite por músicas automatizadas ou reprises do dia anterior. Ainda assim, à noite, as vozes do rádio ofereciam uma presença aos ouvintes, os fazendo companhia de uma maneira que as possibilidades de comunicação oferecidas pela internet e pelas redes sociais não conseguiram substituir.

A superabundância de imagens na televisão ou online também contrasta com a falta de imagens do rádio, que apela à imaginação dos ouvintes, que provoca sensações particularmente fortes à noite, dando às pessoas a impressão de que as vozes do rádio falam apenas com elas.

Algumas estações de rádio ainda oferecem transmissões ao vivo até altas horas da noite. A Radio 3, da rede pública de rádio da Espanha, a RNE 3, convida os ouvintes a explorar temas relacionados à noite em Todos somos sospechosos. A Radio 5 Live da BBC oferece o Up all night, no qual Rhod Sharp e outros apresentadores apresentam notícias, entrevistas e histórias de todo o mundo entre 1:00 e 5:00 da manhã. Algumas rádios da internet ainda ocupam o horário noturno, até mesmo o aplicativo, Call in the Night, um programa experimental de rádio e rede telefônica em que os ouvintes falam sobre seus sonhos. Afinal, quem disse que a noite é feita apenas para dormir?

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