Artigo

Desenvolver o pensamento crítico contra “notícias falsas”

Depois de passar da navegação, de bate-papos e conversas descompromissadas à coleta de dados com a intenção de manipular e desestabilizar, a transformação digital do cenário midiático ressalta a importância cada vez maior da alfabetização midiática e informacional. Essa forma de educação deve repensar a mídia e as bases políticas e éticas que a legitimam.

Por Divina Frau-Meigs

A alfabetização midiática e informacional (AMI) é um recurso frequentemente utilizado no momento atual, em que os meios de comunicação sofrem ameaças de todos os lados, em regimes tanto totalitários quanto democráticos. O alerta foi dado na França, em 7 de janeiro de 2015, quando a revista satírica Charlie Hebdo foi atacada. Foi um ataque a uma das formas mais antigas de mídia do mundo, a caricatura.
 
Na época, eu era diretora do Centre pour l’Éducation aux Médias et à l’Information (CLEMI), o centro para a alfabetização midiática e informacional. Nós tivemos de preparar os alunos para voltar à sala de aula no dia seguinte ao ataque, e atender às necessidades dos professores e dos pais. Fizemos como sempre foi feito depois de grandes catástrofes – procuramos em nossos arquivos por fatos e dados sobre caricatura e propaganda, e postamos recursos midiáticos online (sites de referência, uma resenha jornalística, uma série de manchetes). Também lançamos uma entrevista inédita com Charb, que o CLEMI havia realizado em 2013, chamada de “Podemos rir de tudo?” O cartunista e jornalista, cujo nome verdadeiro era Stéphane Charbonnier, foi morto no ataque.
 
Essa situação de crise demonstrou os pontos fortes da AMI, assim como suas limitações. Estávamos bem preparados para reagir em termos de recursos, mas não antecipamos o impacto das mídias sociais.
 
Como na era anterior às mídias digitais, a AMI tem de dar um salto à frente e incluir entre suas preocupações o que os dados fazem com a mídia – eles colocam as informações na linha de frente, por meio da regulação de algoritmos vinculados ao histórico de busca das pessoas. Eles podem confinar as pessoas em “bolhas de filtragem”, para reforçar as tendências de confirmação que apoiam ideias pré-concebidas e reduzem a diversidade e o pluralismo de ideias ao monetizar o conteúdo (cliques por visualização). É algo que viola a privacidade dos usuários e ameaça as liberdades fundamentais, ao usar “pegadas digitais” para finalidades que estão fora do controle dos usuários.
 
As últimas crises geradas por notícias falsas – uma mistura de boatos, propaganda ideológica e teorias da conspiração – abalaram a AMI. As notícias falsas são ainda mais poderosas do que a desinformação, que é uma mistura tóxica, mas geralmente identificável de verdades e mentiras. As notícias falsas são um fenômeno que se insere na categoria de desinformação, mas suas intenções maliciosas não têm precedentes, pois a tecnologia da informação permite que elas sejam transfronteiriças e transmidiáticas, e, por isso, virais.
 
A alfabetização midiática e informacional deve, necessariamente, levar em conta as transformações digitais, que passaram do “continente azul” para o “continente escuro”. Em outras palavras, ela passou da navegação, dos bate-papos e dos comentários em plataformas controladas pelos GAFAM (sigla que representa: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) para a coleta de dados perniciosa, com a intenção de manipular e desestabilizar em massa.
 
É nesse sentido que a decodificação de propaganda ideológica online é uma tarefa complexa, pois é uma questão de decifrar uma forma de ideologia destrutiva, que, embora seja tecnologicamente inovadora, paradoxalmente, representa uma revolução global conservadora – projetada para criar o caos em sistemas políticos existentes, em vez de propor um sistema de pensamento politicamente progressista.

O retorno da fofoca

É por isso que a AMI tem a obrigação de repensar os meios de comunicação e os fundamentos políticos e éticos que os legitimam. O papel das mídias sociais deve ser revisto, assim como os intercâmbios que ocorrem nelas. O crescimento das mídias digitais, que transformam o público antigo em novas comunidades de compartilhamento e interpretação, também deve ser levado em conta. A tendência renovada de se fazer fofoca manifestada pelas mídias sociais não é insignificante e não deveria ser desprezada. Uma conversa com nuances que comunica uma mistura de boatos, rumores e meias-verdades, a fofoca torna público o que é privado. Ela coloca a autenticidade acima de uma verdade que é percebida como fabricada pelas elites, distante das preocupações cotidianas e locais.

Portanto, as mídias sociais oferecem notícias nas quais a verdade é incerta, e falsidades têm sido usadas para se chegar à verdade ou para mostrar que a verdade não é assim tão definida. Daí vem a tentação de falar das mídias sociais como “pós-verdade”. Porém, essa posição reduz seu alcance e se recusa a ver nelas a busca por uma verdade diferente, quando os sistemas de informação considerados de alto padrão forem à falência. As mídias sociais estão concentradas, novamente, na eterna batalha jornalística entre fatos objetivos e comentários com base em opiniões que se desenrola nesses modelos de influência.

Nas ciências da informação e da comunicação, a fofoca se insere na categoria de vínculos sociais. Ela preenche algumas funções cognitivas essenciais: monitoramento do ambiente, auxílio à tomada de decisões por meio do compartilhamento de notícias, alinhamento a uma determinada situação de acordo com os valores do grupo etc. Essas funções tradicionalmente legitimaram a importância dos meios de comunicação. No entanto, a mídia, agora, é vista como deficiente e tendenciosa – um sintoma disso é o fato de que as pessoas confiam nas fofocas online transmitidas pelas mídias sociais. A culpa recai menos nas mídias sociais do que naquelas pessoas que são responsáveis pelo debate público na vida real.

Nas situações políticas de instabilidade que ocorrem em todo o mundo, as mídias sociais estão restaurando o significado do papel regulatório da narrativa social. Elas ressaltam as violações às normas sociais, especialmente quando instituições políticas se vangloriam de serem transparentes, porque segredos não estão mais seguros. Em contraste a jornais que beiram o viés partidário, as mídias sociais estão quebrando as normas da objetividade, que se fossilizaram ao exigir a obrigatoriedade de haver uma opinião a favor e uma contra. O público demonstra não confiar na “veracidade” desse discurso polarizado e se deixa seduzir pela estratégia da autenticidade. Ele estabelece uma íntima relação de confiança com a comunidade de membros que agora constitui o público e visa a envolvê-lo nos debates, ao mesmo tempo em que se baseia no princípio da transparência. Assim, as mídias sociais colocam a ética da autenticidade em oposição à ética da objetividade.

Explorador, analista e criador

As mídias sociais e suas notícias falsas, consequentemente, são como um livro didático para a AMI, o que pede a aplicação de uma de suas competências fundamentais – o pensamento crítico. Contudo, esse pensamento crítico precisa compreender o valor agregado do digital: a participação, a contribuição, a transparência e a responsabilidade, é claro, mas também a desinformação e o jogo de influências.



A mente crítica pode ser exercitada e treinada, e também pode agir como uma forma de resistência à propaganda ideológica e às teorias da conspiração. Pode-se exigir responsabilidade de pessoas jovens, ao mesmo tempo em que elas devem ser protegidas pelos adultos ao seu redor: elas podem ser levadas a questionar o seu uso das mídias sociais e a considerar as críticas às consequências de tal uso. Também devemos confiar no senso de ética dos jovens, uma vez que ele seja colocado em jogo. No meu curso online aberto e massivo (MOOC) sobre educação midiática – o MOOC DIY MIL (Alfabetização Midiática e Informacional: Faça Você Mesmo, em tradução livre), que ganhou a edição de 2016 do Prêmio da UNESCO Global MIL Awards –, eu ofereço três papéis críticos aos alunos: explorador, analista e criador. O explorador aprende sobre as mídias e os dados; o analista aplica os conceitos, como verificação de fontes, checagem de fatos e respeito à privacidade; e o criador tenta criar seu próprio conteúdo, percebe as consequências de suas escolhas e toma decisões quanto à divulgação.

O MOOC deu à luz projetos como o Citoyen journaliste sur Twitter (cidadão jornalista no Twitter) e o HoaxBuster (caçador de mentiras), contra teorias da conspiração. Em todos os casos, o ponto principal consiste em garantir que os jovens adquiram os reflexos de pensamento crítico da AMI, para que sejam capazes de evitar as armadilhas dos discursos de ódio, dos vestígios involuntários na internet e das notícias falsas. Existem outras iniciativas, incluindo algumas encabeçadas pela UNESCO, que fundou a Aliança Mundial para as Associações sobre Alfabetização Midiática e Informacional (Global Alliance of Partners on MIL – GAPMIL) − o MIL CLICKS é um projeto recente que tratou da AMI por meio de mídias sociais.

Expandir a AMI 

Também é importante que a AMI exercite o pensamento crítico contra as próprios meios de comunicação. No fim das contas, as principais organizações midiáticas estão entre os maiores influenciadores e aqueles que tendem a promover boatos, no Twitter, por exemplo, antes de estes serem confirmados. As notícias falsas que circulam no Facebook, a primeira rede social a disseminá-las, tiram seu grão de verdade do fato de que os profissionais de notícias frequentemente se dobram à pressão de produzir furos de reportagem, transmitidos antes de serem verificados, como fazem os amadores. E as erratas não geram tanto furor quanto os boatos!

Está claro que ainda existem desafios para a expansão da AMI. É preciso convencer os tomadores de decisão de que os formadores devem ser formados, tanto professores quanto jornalistas. Minha pesquisa na Université Nouvelle Sorbonne, dentro do arcabouço do Projeto TRANSLIT da Agence Nationale de la Recherche e da Cátedra UNESCO em “Savoir-devenir em Desenvolvimento Digital Sustentável”, consiste em comparar políticas públicas na Europa. Ela mostra que muitos recursos e oportunidades de treinamento estão disponíveis, oferecidos por organizações ou pela iniciativa pessoal de professores, em vez de serem patrocinados pelas universidades. No entanto, ela aponta para um atraso no nível de políticas públicas, apesar da inclusão da AMI em muitos programas educacionais nacionais. Existem poucos mecanismos interministeriais, pouca ou nenhuma corregulação e pouca ou nenhuma coordenação entre as partes interessadas. A governança da AMI surge como uma combinação, com três modelos existentes em países diferentes: desenvolvimento, delegação ou... descompromisso (D. Frau-Meigs et al, 2017).  

Um salto ético

A boa notícia é que os jornalistas estão cada vez mais conscientes, reexaminando seus posicionamentos éticos e percebendo o valor da AMI. Esse salto ético pode ajudar os professores a reposicionar a AMI e a fornecer recursos válidos para impulsionar a resistência em prol da integridade dos dados e da mídia. Ações que reestabelecem o valor da investigação aprofundada já estão tomando forma – usando o jornalismo de dados, que revela informações que não podem ser obtidas de outra forma.

Escândalos como o vazamento colossal de documentos confidenciais conhecido como Panama Papers ajudaram a moralizar a vida política e a restaurar a confiança na imprensa. Outras ações visam especificamente a combater notícias falsas usando meios digitais. Tais ações incluem o blog da agência de notícias Agence France Presse (AFP) (que revela o que acontece nos bastidores de uma grande rede de notícias); Décodex, parte do jornal francês, Le Monde (que faz uma lista de sites de acordo com sua falibilidade), o RevEye do Google (que verifica se uma imagem é genuína com três cliques); e o Conspi Hunter no Spicee, a plataforma online de reportagens de TV e documentários (para desbancar teorias da conspiração).

Para ser totalmente aproveitado e produzir cidadãos educados, o pensamento crítico da AMI deve ser aplicado também à geoeconomia das mídias sociais. As plataformas digitais GAFAM, todas sob a legislação da Califórnia, há muito tempo se recusam a ser classificadas como empresas de mídia, para evitar qualquer responsabilidade social e não se submeter às obrigações dos serviços públicos. Porém, o monitoramento algorítmico revelou a capacidade que as GAFAM têm de exercer controle editorial sobre o conteúdo que vale a pena monetizar. Ao fazer isso, essas organizações definem a verdade, porque esse controle é real ou ético.

Até o momento, as megamídias das GAFAM têm jogado com a autorregulação: elas fazem as próprias normas, elas decidem remover sites ou contas suspeitas de disseminar notícias falsas, sem assumir quaisquer responsabilidades. Contudo, elas não vão conseguir lutar por muito tempo contra a necessidade de um modelo responsável – que provavelmente será um híbrido de “entidade autorregulatória” e “entidade regulatória pública”, se quiserem manter a confiabilidade de suas comunidades online. As comunidades também poderiam se organizar entre si, e até mesmo contornar as mídias, para regulamentar as notícias junto com os jornalistas, como é o caso do Décodex. A opção de elaborar em parceria um algoritmo que tenha a ética jornalística e as liberdades fundamentais embutidas em seu DNA é, sem dúvida, uma das alternativas futuras, de acordo com a lógica digital!

Explorer, analyst and creator

Social media and fake news consequently make up a textbook case for MIL, which calls upon its fundamental competence − critical thinking. But this critical thinking must have an understanding of the added value of the digital: participation, contribution, transparency and accountability, of course, but also disinformation and the interplay of influence.



The critical mind can be exercised and trained, and can also act as a form of resistance to propaganda and plot theory. Young people must be put in a position of responsibility while being protected by the adults around them: they can be prompted to call into question their use of social media and to take into account the criticism against the consequences of their practices. We must also trust their sense of ethics, once it is called upon. In my Massive Open Online Course on Media Education – the MOOC DIY MIL, which received the 2016 UNESCO Global MIL Award – I offer students three critical roles: explorer, analyst and creator. The explorer gets to know the media and data; the analyst applies the concepts, such as source verification, fact-checking, respect for privacy; the creator tries his/her hand at producing his/her own content, sees the consequences of his/her choices and makes decisions about distribution.

The MOOC has given birth to projects such as “Citoyen journaliste sur Twitter” (citizen journalist on Twitter) and “HoaxBuster”, against plot theories. In all cases, the point is to ensure that young people acquire the critical thinking reflexes of MIL, so that they can avoid the traps of hate speech, non-voluntary internet traces and fake news. Other initiatives exist, including some led by UNESCO, which has founded the Global Alliance of Partners on MIL (GAPMIL) − MIL CLICKS is a recent project to take ownership of MIL via social media.