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As mulheres e o rádio: na mesma sintonia

Em um ambiente sonoro que há muito tempo é dominado por homens, as mulheres demoraram para criar um lugar para si mesmas. No entanto, tendo sido ouvintes assíduas desde o início, elas tiveram um papel central na formação da história e do conteúdo do rádio..

Kristin Skoog

IEm setembro de 2019, a Corporação Britânica de Radiodifusão (British Broadcasting Corporation – BBC) noticiou em seu site a história de Sediqa Sherzai. Vivendo na cidade de Kunduz, no norte do Afeganistão, Sherzai criou a Rádio Roshani, em 2008. Dirigida por mulheres e promovendo os direitos das mulheres, hoje a emissora continua a transmitir, apesar das ameaças de morte e outros desafios relacionados à guerra. Seus programas com participação por telefone oferecem um importante espaço e uma plataforma pública para as vozes e as preocupações das mulheres. A Rádio Roshani é um exemplo poderoso da forte relação entre as mulheres e o rádio atualmente. 

Desde a década de 1920, quando o rádio foi introduzido nas casas das pessoas, o meio proporcionou um espaço para as mulheres serem ouvidas – nos sentidos literal e figurado – em um ambiente sonoro público predominantemente masculino. O rádio uniu, conectou e obscureceu as fronteiras entre as esferas pública e privada e, ao fazê-lo, falou com mulheres como donas de casa, trabalhadoras, consumidoras e cidadãs. Em muitos países, o surgimento do rádio nos lares também coincidiu com as mulheres obtendo o direito ao voto.

História esquecida

Atualmente, há uma quantidade crescente de pesquisas históricas que exploram esse tema. Estudos que examinam contextos nacionais específicos – da Argentina, Austrália, Alemanha, Estados Unidos, Reino Unido, Suécia e Turquia, por exemplo – trouxeram as mulheres e os temas de gênero de volta à história das transmissões. Eles descobriram histórias marginalizadas e muitas vezes “ocultas” de mulheres na radiodifusão, cujas vidas e trabalhos foram esquecidos ou ignorados. Eles registraram avanços fundamentais na programação feminina, incluindo alterações na definição do contestada expressão “interesse das mulheres”, e destacaram debates sobre as vozes das mulheres – tanto no ar quanto fora. Juntas, essas histórias apontam para o papel do rádio na vida das mulheres, e como essa relação contribuiu para os processos de democratização e modernização.

As mulheres tiveram um papel fundamental – como apresentadoras e ouvintes – na concepção das práticas de desenvolvimento geral e transmissão por meio do rádio. Os formatos e gêneros de programas que agora achamos naturais, como seriados e programas de entrevistas, foram concebidos para um público feminino. Nos EUA, na década de 1930, por exemplo, uma época dominada pelo rádio comercial, as mulheres tiveram um papel importante como consumidoras e se tornaram um público-alvo para anunciantes e patrocinadores.

As transmissões diurnas passaram a ser caracterizadas como “femininas”, e logo após as radionovelas passaram a dominar as ondas de rádio porque eram muito lucrativas. Michele Hilmes, professora de mídia e estudos culturais na Universidade de Wisconsin-Madison e especialista em radiodifusão nos EUA, sugeriu que a natureza de gênero das séries radiofônicas diurnas logo significou a oferta de espaço para as mulheres. Em seu livro publicado em 1997, Radio Voices: American Broadcasting, 1922-1952 (Vozes do rádio: a radiodifusão norte-americana 1922-1952, em tradução livre), Hilmes escreve que “sob a cobertura do dia”, as séries de rádio abordavam e confrontavam assuntos que as mulheres norte-americanas das décadas de 1930 e 1940 enfrentavam.

Uma tendência semelhante pode ser observada no formato de revista. O programa Woman’s Hour (Hora da mulher), lançado pela BBC Radio em 1946, foi o primeiro dedicado às mulheres do Reino Unido. Temas como “manutenção da casa” e “educação dos filhos” logo foram substituídos por questões difíceis enfrentadas pelas mulheres, como política e cidadania. E, logo no início, também foram abordados temas delicados e tabus, como a menopausa e as relações íntimas no casamento..

Repórteres e pioneiras

As mulheres também contribuíram para o desenvolvimento de novos formatos, como o documentário social. A produtora e apresentadora de rádio britânica Olive Shapley (1910-1999) é um exemplo disso. Sua carreira começou na BBC em 1934, onde produziu o programa Children’s Hour (Hora das crianças) para a região norte da BBC, com sede em Manchester.

A depressão da década de 1930 havia mergulhado muitas áreas da Grã-Bretanha na pobreza – isso era visível particularmente em Manchester e em seus arredores. Shapley fez bom uso de vans de gravação móvel, que lhe permitiram viajar por toda a região para entrevistar pessoas em suas casas, nas ruas ou no trabalho. Seus documentários foram pioneiros, tanto na técnica quanto nos assuntos. Seu objetivo, disse ela mais tarde, era fazer com que “pessoas reais falassem”.

Pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, Shapley produziu um programa chamado Miners’ Wives (Esposas de mineradores), que explorava o modo de vida de dois vilarejos de mineração – um no Condado de Durham, no nordeste da Inglaterra, e outro perto de Béthune, na França. O programa foi posteriormente traduzido e retransmitido no departamento francês da BBC durante a guerra.

Foi também durante a Segunda Guerra que surgiram as primeiras mulheres correspondentes de guerra. A radiojornalista norte-americana Betty Wason (1912-2001) viajou pela primeira vez à Europa para o Transradio Press Service, uma agência de notícias que fornecia reportagens para estações de rádio. Ela estava em Praga em 1938, quando os nazistas assumiram o governo, e relatou sobre eventos que ocorreram lá. 

Wason foi então contratada pela Columbia Broadcasting System (atual CBS) e logo estava fazendo reportagens sobre a invasão nazista na Noruega. Mais tarde, sua base de atividades passou a ser a Grécia. No entanto, pediram à repórter pioneira que colocasse um homem para ler suas reportagens no ar. Na época, acreditava-se que vozes femininas não eram adequadas para reportagens sérias. “Eles diziam que as mulheres não eram qualificadas o suficiente ou suficientemente experientes para lidar com assuntos sérios”, lembrou ela mais tarde.

Outra pioneira do rádio foi Audrey Russell (1906-1989). A primeira mulher correspondente de guerra da BBC, entre 1941 e 1945, ela contribuiu com relatórios de guerra e entrevistas. Russell se concentrou nas experiências dos civis durante a guerra, como o impacto dos bombardeios de longo alcance alemães sobre Dover e Folkestone, e a destruição de um foguete V-2. No entanto, o fato de ser mulher a impediu de reportar da frente de batalha – que era reservada para seus colegas homens. Apesar dos obstáculos que enfrentaram, Wason e Russell foram vozes significativas que contestaram um espaço dominado por homens.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a programação feminina de rádio teve um papel importante na mobilização do moral na frente doméstica, mas também foi usada como veículo de propaganda no exterior. Por exemplo, os programas de propaganda radiofônica norte-americanos foram criados para atingir ouvintes na América Latina – cujos recursos, como borracha e petróleo, eram cruciais para o esforço de guerra dos EUA –, com o objetivo de manter boas relações com o povo e combater a propaganda nazista na região. Pesquisas mostram que as ouvintes latino-americanas foram visadas de maneira particular, pois eram vistas como essenciais para os valores familiares.

TA ideia de que o rádio poderia unir as mulheres através das fronteiras nacionais ganhou força depois da guerra. As mulheres foram a força motriz por trás da criação, em 1951, da Associação Internacional das Mulheres no Rádio (International Association of Women in Radio – IAWR); em 1957, foi adicionado à sigla um T, para televisão. A  IAWRT, que ainda existe, foi fundada para promover a paz, aproximando mulheres apresentadoras para compartilhar ideias e informações. Ela foi criada pela feminista, historiadora econômica e radialista holandesa Willemijn (Lilian) Hendrika Posthumus-van der Goot (1897-1989). (1897-1989). Atualmente, essa organização é uma rede mundial com membros de 54 países – com foco na igualdade de gênero e um trabalho para melhorar o papel das mulheres na mídia e nas comunicações.

O feminismo e o rádio

A evolução da programação radiofônica feminina tem sido frequentemente associada ao movimento feminista. No final da década de 1940 e na década de 1950, por exemplo, o programa Woman’s Hour estava ligado a vários grupos de mulheres na Grã-Bretanha. No início, a IAWRT também estava fortemente ligada ao movimento internacional de mulheres, por meio do Conselho Internacional de Mulheres (International Council of Women – ICW).

Esses primeiros exemplos podem não ter se identificado como “feministas”, embora claramente o fossem de várias maneiras. O Dia Mundial do Rádio de 2014 celebrou as mulheres no rádio e o empoderamento feminino, mas também observou que a igualdade de gênero continuava sendo um desafio nos meios de comunicação..

Porém, existem diversos exemplos do ativismo feminino no rádio, com uma agenda feminista clara. A radiOrakel, da Noruega, que alega ser a primeira estação de rádio feminista no mundo, foi criada em outubro de 1982 em Oslo – e atualmente está disponível via FM e pela internet. Sua missão é treinar mulheres em áreas como radiojornalismo e engenharia de som. A estação apoia ativamente mulheres como entrevistadoras e entrevistadas. Também estipula que pelo menos metade da música transmitida deve ser composta ou executada por mulheres..

As estações de rádio comunitárias também oferecem um importante espaço para o empoderamento feminino. Frequentemente descritas como um “terceiro” modelo, uma vez que oferecem uma alternativa à radiodifusão pública e comercial, as rádios comunitárias geralmente não têm fins lucrativos. Elas são operadas por voluntários e atendem comunidades locais específicas que geralmente são negligenciadas pela grande mídia. Como observou Caroline Mitchell, professora associada de rádio e participação na Universidade de Sunderland, no Reino Unido, e cofundadora da Fem FM, a primeira estação de rádio britânica para mulheres, criada em 1992, as rádios comunitárias oferecem “um espaço para a representação, a participação e a resistência das mulheres”.

Essa reinterpretação do papel desempenhado pelas apresentadoras e ouvintes do sexo feminino lança uma nova luz sobre a história do rádio. Deixando de lado as óbvias diferenças entre a Rádio Roshani no Afeganistão em 2019, as transmissões de seriados nos EUA na década de 1930, ou a radiOrakel na Noruega atualmente, esses exemplos são uma indicação clara de que esse meio de comunicação tem sido, desde o início, uma plataforma poderosa para as vozes das mulheres.

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